Região ainda nem se recuperou direito da tragédia de 2020, e previsão é de estiagem ainda mais severa neste inverno. Comunidade ribeirinha tem sobrevivido de doações.
Na comunidade ribeirinha de Barra de São Lourenço,
no Pantanal de
Mato Grosso do Sul, famílias que antes sobreviviam da pesca, da coleta de iscas
vivas e da agricultura de subsistência dependem de doações para viver desde
o ano passado, quando viram a região ser devastada pelas queimadas.
Em 2020, o Pantanal foi atingido pela maior
tragédia de sua história. Incêndios destruíram cerca de 4 milhões de
hectares. 26% do bioma - uma área maior que a Bélgica -
foi consumida pelo fogo. Cerca de 4,6 bilhões de animais foram
afetados e ao menos 10 milhões morreram.
Só no território de Mato Grosso do Sul, 1,7 milhão
de hectares virou cinzas. No Mato Grosso, a destruição foi maior: quase 2,2
milhões de hectares.
A região ainda não se recuperou direito e corre agora o risco de reviver essa catástrofe -- e talvez numa
escala até pior, segundo alerta de cientistas. A previsão é de um novo recorde de estiagem neste inverno. Somado a
isso, o país vive uma crise hídrica, que
também assola a região, com o nível dos rios mais baixo para essa época.
“Não tem isca, não tem pesca, o peixe está muito
ruim porque as baias e os corixos [canais] estão todos impedidos porque estão
secos. Não tem como o peixe ir e vir porque não tem circulação de água. A
dificuldade é imensa. Vivemos das doações que recebemos. Tentamos plantar
alguma coisinha, mas está difícil de ir para frente”.
O desabafo é de Leonilda Ares de Souza,
de 54 anos. Desde que nasceu, ela vive no local, que fica quase isolado no meio
do Pantanal. A cidade mais próxima é Corumbá, a 250 quilômetros de distância, e
o único acesso é por barco.
Diante
desse cenário, autoridades se mobilizam, capacitando e ampliando equipes de
combate. No entanto, especialistas questionam a distribuição do efetivo.
O alerta de uma nova grande estiagem no
Pantanal vem a partir de estudos como o do pesquisador Marcelo Parente
Henriques, do Serviço Geológico do Brasil (SGB-CPRM). Ele aponta que, pelo segundo ano consecutivo,
está previsto um recorde histórico de estiagem
na região.
Segundo
Henriques, as sete estações fluviométricas instaladas ao longo do rio
Paraguai - principal curso de água do Pantanal -,
entre Cáceres (MT) e Porto Murtinho (MS), têm apresentado níveis bem abaixo da
média.
O
motivo é a pouca
chuva na região. De acordo com o Instituto Nacional de
Pesquisas Espaciais (Inpe), a precipitação dos últimos meses na bacia do alto
Paraguai ficou abaixo do esperado. O Pantanal não
tem uma “cheia” há três anos, conforme dados do SGB-CPRM. A
principal condição para que ela aconteça é que o nível d’água na estação
fluviométrica de Ladário supere os 4 metros. A última vez
foi em 2018, quando atingiu a máxima de 5,35 metros.
Desde então, boa parte da planície não é inundada, o que dificulta a navegação pelos rios que
cortam o bioma e tem impacto direto no combate às queimadas porque os rios são
usados pelas equipes para chegar aos locais de difícil acesso por terra.
No início de junho, o nível do rio Paraguai em
Ladário, por exemplo, ficou abaixo de 1,50 metro.
Com isso, a Marinha do Brasil passou a adotar restrições à navegação, de acordo
com o Comando do 6º Distrito Naval da Marinha do Brasil. A expectativa dos
especialistas é a de que o nível do rio só volte a subir a partir de
meados de outubro, o que interfere em outros aspectos da vida
pantaneira.
"No ano passado, em alguns pontos, aconteceu
de faltar água para rebanho. A flora e a fauna do Pantanal também dependem da
água. Então, é uma questão preocupante e que demanda atenções em todas as
áreas, não só na questão dos incêndios florestais", afirma o secretário de
Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul, Jaime Verruck.
Medidas de
prevenção
O bioma Pantanal é considerado uma das maiores extensões úmidas contínuas do
planeta. Cerca de
60% do seu território está no Mato Grosso do Sul e os 40% restantes, no Mato
Grosso. A proteção da região é de responsabilidade
conjunta do governo federal, por meio do Ibama, ligado ao Ministério do Meio
Ambiente, e dos dois governos estaduais.
Em
março, o ministério editou uma portaria decretando estado de emergência
ambiental nos estados. A medida permite à pasta fazer, por exemplo, a alocação
de recursos e preparar estruturas, como as brigadas de incêndio. Procurado pela
reportagem, o ministério
não informou as ações tomadas em relação ao Pantanal.
O secretário estadual de Meio Ambiente do Mato
Grosso do Sul, Jaime Verruck, diz que até o momento não houve envio de recursos
por parte do governo federal. Verruck conta que encaminhou ainda uma proposta
de Acordo de Cooperação Técnica (ACT) com o Ibama e o Ministério Público
Estadual (MPE) e o Ministério Público Federal (MPF), mas que ainda não obteve
resposta.
Entre outros pontos, o secretário cita a
necessidade da contratação de mais brigadistas do Prevfogo, de responsabilidade
do Ibama.
"O governo federal já está sabendo da situação
que o Pantanal pode enfrentar neste ano. Nós iniciamos conversas com o MPMS,
MPF e Ibama, mas, até agora, não fomos respondidos", afirma.
Procurado, o MPMS disse aguardar uma
resposta do Ibama, mas que a participação do órgão no acordo não é
imprescindível para o envio de recursos para o estado. O MPF informou apenas que o acordo está sob revisão do Ibama.
O G1 entrou em contato com o Ibama, mas até última atualização desta reportagem não havia
obtido retorno.
Recursos
Diante
do cenário devastador do ano passado e com a previsão de que as condições
climáticas favoreçam novos incêndios na região, os governos estaduais e
organizações não-governamentais iniciaram uma série de ações preventivas antes
do período mais crítico, que vai de julho a dezembro.
Ao contrário de 2020, em que não houve
destinação prévia de recursos para o combate ao fogo, o governo do Mato Grosso
do Sul destinou neste ano R$ 56
milhões para medidas preventivas e melhoria da
estrutura de combate aos incêndios florestais.
Em
Mato Grosso, o governo do estado também decretou situação de emergência
ambiental entre os meses de maio e novembro e, adiantou o
período proibitivo de queimadas na zona rural em todo o estado.
O estado
anunciou que investiu mais de R$
2,5 milhões e inaugurou uma unidade do Corpo de
Bombeiros em Poconé, para atuar em caso de incêndios no Pantanal. Também foram
gastos R$ 3,5 milhões para aquisição de materiais e
equipamentos para ações de combate aos incêndios.
Entre as medidas adotadas, o governo
sul-matogrossense renovou a parceria com o Laboratório de Aplicações de
Satélites Ambientais (LASA), ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro.
O
LASA possui um sistema de alerta de queimadas chamado "Alarmes",
usado pelo governo de Mato Grosso do Sul desde o ano passado e que foi
atualizado para ficar mais ágil e preciso. A nova plataforma combina
inteligência artificial com imagens de satélites da Nasa, agência aeroespacial
dos Estados Unidos, e de focos de calor para identificar novas áreas atingidas
pelo fogo.
O monitoramento diário da localização e
da extensão das áreas queimadas permite, por exemplo, acompanhar a velocidade
de propagação do fogo.
Do
lado do Mato Grosso, o estado informou que também intensificou, desde o início
do ano, o monitoramento por satélite de todo o território para identificar
alterações de vegetação e focos de calor com rapidez.
Brigadistas
Outra medida foi reforçar a linha de
frente com o treinamento de brigadistas. "Um dos grandes problemas no ano
passado foi o tempo de resposta no combate aos incêndios florestais. Este ano,
estamos com um tempo de resposta mínimo, tanto pela quantidade de profissionais
que estão in loco como pela antecipação de queimadas", disse Verruck.
Se
em 2020, Mato Grosso do Sul contou com uma força de combate aos incêndios
florestais com cerca de 300 pessoas, agora, no segundo
semestre de 2021, este efetivo quadriplicou. Aproximadamente são 1200 pessoas,
entre bombeiros de Corumbá, a força-tarefa com militares recém treinados, 95
brigadistas do Prevfogo, 200 voluntários capacitados pelo órgão, mais os
voluntários e brigadistas orientados pelas ONGs e o Senar/MS.
O
diretor regional do Prevfogo em
Mato Grosso do Sul, Márcio Yule, disse ao G1 que o
efetivo no estado deve aumentar de forma tímida, em 4 pessoas, passando de 91
para 95. "Ainda não temos a autorização do Ibama para
contratarmos por um período maior de dois anos, ininterruptos. Não há previsão
orçamentária para isso. Então, temos os brigadistas do Prevfogo apenas por
estes meses [julho a dezembro]"
Com as restrições
orçamentárias, Yule diz que a formação
dos voluntários é essencial para o combate do fogo e o Prevfogo e o Ibama atual
de forma direta na educação destas pessoas.
Durante
os incêndios de 2020, Yule relembra que Mato Grosso do Sul chegou a
receber brigadistas de outros 13 estados brasileiros. A
partir daí, o combate às chamas passou a ser feito pela terra e pelo ar, com
apoio de militares e aeronaves de outros estados, como Paraná e Santa Catarina
e de várias esferas do poder público.
O
sargento Adalto de Oliveira Campos estava lá. Com 23 anos como bombeiro em Mato
Grosso do Sul, ele era um dos mais experientes no trabalho de combate a
incêndio florestal. Registra na memória, em fotos e vídeos momentos de emoção
por fazer um trabalho de fundamental importância para moradores da região, para
os bichos, para os governantes.
"As
maiores dificuldades enfrentadas estavam no difícil acesso, a comunicação com
aeronave, os terrenos acidentados em que o fogo se encontrava, como morraria,
regiões alagadas, vegetação alta, matas fechadas" explica o sargento,
destacando que são essas as situações levadas em consideração na hora de apagar
as chamas.
"Tivemos de evacuar e orar pra Deus,
para encontrar a tempo um lugar para tentar ancorar. Graças a Deus conseguimos
sobressair. Já tivemos várias vezes de fugir do fogo, isto, no meio do
Pantanal. O vento vira e não tem onde ancorarmos, lembra Adalto, que, além do
enfrentar as chamas, passou pela morte da avó e pela Covid, ambas situações em
trabalho.
Organizações não-governamentais também ajudam de
forma frequente com a capacitação de brigadistas voluntários. A entidade
Ecologia e Ação (Ecoa), atuante no Pantanal sul-mato-grossense, é uma delas.
Uma das estratégias, de acordo com o presidente da
instituição, André Siqueira, é a criação de pequenas brigadas formadas
moradores locais. O objetivo é diminuir o tempo de resposta
para controlar o fogo. Com isso, eles protegem as próprias casas e
param o alastramento do incêndio, diminuindo, incluindo, a necessidade do
deslocamento de grandes equipes.
"As comunidades locais são fundamentais para
manutenção à conservação do bioma e populações tradicionais. A gente capacita,
forma e instrumentaliza esses grupos. Os esquadrões são compostos por 7 a 15
pessoas, que têm a capacidade de fazer leituras das queimadas com seus vizinhos
de propriedades e agirem como primeira resposta ao combate", explica
Siqueira.
O
coronel aposentado da Polícia Militar Ângelo Rabelo, que preside uma das
principais ONGs que atuaram na linha de frente contra os incêndios no ano
passado, o Instituto Homem Pantaneiro (IHP), lembra que viveu um dos piores
momentos no ano de 2020, com 90% das áreas, reservas particulares e também os
parques queimados, além das perdas expressivas de biodiversidade e
comprometimento da saúde das pessoas que moram no entorno do Pantanal.
“Isso nos levou a uma grande mobilização
para estarmos melhor preparados neste ano de 2021 e através da participação da
sociedade, empresas, parceiros, conseguimos constituir uma brigada, que está
trabalhando desde fevereiro nessa região da Serra do Amolar até a região do
Porto Jofre”, afirmou o coronel.
O Corpo de Bombeiros de Mato Grosso (CBM-MT) já capacitou 158 moradores e
trabalhadores que vivem na região do Pantanal sobre as técnicas e ações
preventivas de combate aos incêndios florestais. Os ciclos
de treinamento foram realizados por equipes de militares do 1° Pelotão
Independente CBM da cidade de Poconé, a 104 km de Cuiabá.
Além das ampliações de recursos humanos e
aportes financeiros, Verruck citou outras medidas adotadas. Ele disse que as 240 pontes
que dão acesso as várias regiões do Pantanal sul-mato-grossense estão
protegidas, reforçadas e reformadas. "Muitas estradas
e pontes queimaram no ano passado. Com isso, o acesso as áreas ficou
extremamente prejudicado, nós reformamos".
Em
abril foi lançado o plano de prevenção e combate a incêndios no Pantanal, pelo
governo do estado. A iniciativa previa, por exemplo, que equipes dos bombeiros
se deslocassem para as localidades de Rio Negro, Alto Paraguai, Paiaguás e
Nhecolândia para reconhecimento das áreas quanto a acessos, pontos críticos e
construção de aceiros para proteger as pontes de madeira.
Além disso, foi formalizado também o
Grupo de Resgate Técnico Animal Cerrado Pantanal. A unidade foi criada
emergencialmente em 2020 e com a oficialização vai coordenar as ações de
resgate e atendimento aos animais silvestres vítimas de desastres ambientais no
estado.
Durante
os incêndios, combater as
chamas é como "lutar" com as situações "humanas".
Os bombeiros conviveram de perto com o sofrimento dos bichos e cabia a eles
fazer o resgate, cujo tempo-resposta era fundamental para a sobrevivência
destes e consequentemente, de toda a fauna.
Alguns
animais conseguiram ser resgatados, outros não. As queimaduras deixaram os
bichos pantaneiros mais debilitados. Em de decorrência das chuvas e acumulo de
fumaça, aeronaves nãos conseguiram aterrissar para ter acesso à fauna.
Um
dos símbolos do que o fogo fez com a fauna pantaneira foi a onça macho que
recebeu o nome de Joujou. Com diversas queimaduras, principalmente nas patas, o
felino chegou para tratamento no Centro de Reabilitação Silvestres (Cras), em
Campo Grande, dia 4 de novembro de 2020.
No
dia 21 de janeiro, já curada e com 87 quilos a mais, a onça foi
solta na Serra do Amolar, exatamente na mesma região em que foi encontrada
queimada. O animal foi deixado com chip para monitoramento.
O
pesquisador da fauna pantaneira Walfrido Thomas comenta ainda que como o
Pantanal é um ecossistema muito resiliente, já está em processo de recuperação.
“Todos os animais que vivem na área queimada foram de alguma forma afetados.
Isso serve para dar a magnitude do impacto potencial dos incêndios, mas não a
dimensão, que seria medir exatamente esse impacto. Esse número contém os
animais que morreram diretamente pelo fogo, indiretamente pela falta de
alimentos, abrigo e predação, bem como os que, mesmo tendo sobrevivido,
sofreram algum efeito negativo após o fogo”, comenta.
Uma das iniciativas que ganha espaço para
evitar ou controlar os incêndios florestais em Mato Grosso do Sul é o uso
do próprio fogo para controlar as queimadas, por meio do Manejo Integrado (MIF).
O
secretário estadual de Meio Ambiente explica que a prática consiste em analisar
a biomassa, o material que está sujeito a queimar em determinado local, e
colocar fogo nessa matéria orgânica de maneira controlada, antecipadamente.
Dessa forma se elimina o material que pode alimentar um foco de incêndio
descontrolado.
"O
estado identifica algumas áreas de risco, assim o produtor poderá fazer o
manejo. O produtor rural pode identificar que uma área e apresentar uma
solicitação de autorização dessa queima controlada acompanhados por um órgão
ambientação", explicou o secretário.
Diante da premissa das entidades
ambientes, há uma fiscalização, para que as proporções não saiam do controle. Este manejo
já vem sendo executado desde janeiro de 2018 na reserva indígena Kadiwéu,
por meio do projeto
Noleedi, iniciativa desenvolvida pela Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul (UFMS) e o Prevfogo.
A
reserva indígena possui cerca de 540 mil hectares localizados em Porto
Murtinho, no sudoeste de Mato Grosso do Sul. O estudo tem como objetivo estudar
o efeito do fogo e dos diferentes regimes de inundação na fauna e na flora do
Pantanal.
Segundo o coordenador do projeto e professor do
Instituto de Biociências da UFMS, Danilo Bandini Ribeiro, já foi possível
avaliar o impacto do manejo integrado no controle dos incêndios ilegais que
ocorrem na região, sendo possível notar a redução na quantidade de queimadas e
também dos focos de calor.
"Além disso conseguimos notar uma diminuição
da dependência do clima do fogo. Porque existe um padrão, quanto mais quente e
seco, mais incêndio. Esta dependência diminuiu quando a gente começou a manejar
o fogo na terra indígena", explicou ao G1.
Conforme o coordenador, o manejo do fogo consiste
em usar o conhecimento tradicional aliado com conhecimento científico para
manejar principalmente o combustível que é a mata de vegetação seca que fica na
região e pode causar os incêndios. "A principal tarefa é manejar a carga
de combustível, pois estamos em um ambiente
dependente do fogo como é o caso do
Pantanal e do cerrado", finalizou.
Junto com o marido, Leonilda Ares, ribeirinha na
região de Barra do São Lourenço, olha com desolação para a paisagem ainda em
processo de recuperação. “O nosso futuro está muito duvidoso, as coisas estão
muito complicadas”, comenta, completando que a situação já fez várias famílias
abandonarem o local e irem para a cidade.
Ela se emociona quando lembra que algumas casas da
comunidade chegaram a ser atingidas pelas chamas dos incêndios e do esforço que
foi feito para impedir que o fogo se espalhasse. “Em toda a nossa vida, nós
nunca vimos uma situação com fogo tão ruim como esse ano que passou. Muitos
animais se perderam. Muitos peixes morreram nas bacias, nos corixos, nos lagos
e nos rios, pois todos praticamente ficaram secos".
"Foram momentos de desespero. Achamos que não
iríamos conseguir conter o incêndio. Nós lutamos com balde e com o que a gente
tinha com apoio de outras pessoas como brigadas e bombeiros”, relembra
Leonilda.
Com a forte estiagem que já atinge a região,
Leonilda se preocupa em enfrentar novamente a catástrofe do ano passado. “Esse
ano está muito seco e temos medo de outros incêndios. A gente fica nesse
pânico. Aqui tá muito quente, chuva não tem e os rios secando. Fora os muito
resíduos que tem para queimar”, conta, explicando que as 23 famílias que
permaneceram na comunidade estão sendo capacitadas pelo Instituto Homem
Pantaneiro para atuarem como brigadistas.
Na região da Baía Negra, a 25 quilômetros
de Corumbá, a produtora rural Julia Gonzáles, de 62 anos, diz que muitas
pessoas estão passando por dificuldades também e dependem das doações de
organizações não governamentais e do trabalho de voluntários.
Julia
conta que não sabe de onde tirar a comida para por na mesa, pois a
"roça" que plantava foi destruída pelo fogo no ano passado e agora,
como a nova seca, as plantações não brotam. “A sensação é de tristeza, porque a
gente estava acostumado ter armário cheio, fartura, como batata- doce e
mandioca da roça e hoje não tem nada”, lamenta.
Segundo o Laboratório de Aplicações de
Satélites Ambientais, os incêndios destruíram no Pantanal no ano passado 261,4
mil hectares de terras indígenas em Mato Grosso do Sul e Mato Grosso. Foram
atingidas a Baia dos Guatós, Cachoeirinha, Guató, Kadiwéu, Perigara,
Taunay/Ipegue e Tereza Cristina.
Na
aldeia Guató, que está localizada a cerca de 300 quilômetros de Corumbá e onde
vivem cerca de 40 famílias, o cacique Oswaldo Correia da Costa, diz que o fato
da comunidade viver em uma ilha, a Ínsua e o trabalho de prevenção feito pelos
próprios moradores, com apoio de brigadistas e bombeiros, reduziu os impactos
das queimadas, mas que a seca teve consequências mais severas.
Com
a redução do nível do rio que cerca a ilha, o acesso da comunidade, antes feito
por barco, passou a ser feito somente por trilha. Além disso, os moradores
passaram a ter muita dificuldade para pescar e para sobreviver começaram a
plantar próximo as margens do rio, que tem uma área mais úmida.
·
Produtores
Assim como os ribeirinhos, grandes produtores
rurais da região também sofreram com os incêndios. Muitos, como o pecuarista
Carlos Augusto de Oliveira Botelho, de 70 anos, chegaram a participar
diretamente do combate ao fogo.
Ele possui propriedades em Corumbá, próximo a
região de fronteira com a Bolívia e assim que soube do fogo, ficou intercalando
entre as fazendas que possui na região. Botelho comenta que se lembra,
exatamente, do cenário de destruição nestes locais.
“Fiquei sabendo dos incêndios tanto pelo meu
gerente como pela televisão. Na época, saí de Goiânia imediatamente, peguei um
voo e fiquei lá em meio aos brigadistas. Tive prejuízo grande de gado e de
animais, mas o que é incalculável é o prejuízo ambiental”, lamentou.
Além de pecuarista, Botelho também é empresário e
biólogo por formação. Para este ano, o pecuarista fala que as perspectivas
também não são boas e por isso estão fazendo um aceiro nas cercas, que é uma
medida para conter a propagação do fogo nas pastagens.
“Estamos fazendo o aceiro para o fogo não pular.
Infelizmente, para este ano, a perspectiva é muito pior, porque o tempo está
muito seco. Eu cheguei ontem lá da fazenda e daqui a alguns dias vou novamente.
Lembro da ponte que vai para lá, no morro azul, estrada da manga", relembrou.
"A gente viu ela queimar e não podia fazer
nada. Jogamos água, água, mas, não adiantou. Onde o fogo passou foi tragédia”,
lamentou pecuarista.
O também pecuarista José Benedito de Arruda
Boabaid, de 72 anos, conta que teve incalculáveis prejuízos na propriedade, uma
herança de família comandada por ele há 6 décadas e que foi cerca de 80%
queimada na região do Paiaguás, em Corumbá.
"A minha fazenda fica bem na divisa de Mato
Grosso do Sul com Poconé, no Mato Grosso. Quando cheguei, o fogo já estava
incontrolável e onde ele passava foi uma tragédia. Acabou com meu pasto, acabou
com o gado e o mato, depois, começava a querer brotar, só que não tinha chuva”,
detalhou.
Durante o período de combate, Boabaid conta que
ficou impressionado diversas vezes. “Foram vários momentos que não esqueço. Um
deles é quando o fogo pulou uns 50 metros de distância. Acho que foi um
redemoinho de vento e, com isso, estou me precavendo este ano, comprando
bombas, colocando energia solar, já que a seca parece estar vindo novamente este
ano”, ponderou.
·
Cidadãos de cidades pantaneiras
conviveram com a fumaça
Corumbá, a 425 quilômetros de Campo Grande, está
localizada dentro da região do Pantanal sul-mato-grossense. A cidade também foi
impactada pelas queimadas que atingiram o bioma no ano passado. Durante o período mais crítico
dos incêndios, uma camada de fumaça provocada pela queima da vegetação encobriu
o município.
Segundo a gerente de Atenção à Saúde de Corumbá,
Patrícia Daga, houve um aumento de cerca de 30% nos atendimentos de idoso e
crianças com problemas respiratórios nas unidades de saúde em razão da fumaça
das queimadas.
Patrícia diz que todos os anos Corumbá sofre com o
tempo seco e as queimadas, porém 2020 foi excepcional e provocou o aumento na
procura pelos postos de saúde. "Nós tivemos, principalmente, um aumento
nos grupos das crianças e dos idosos, que precisaram muito dos serviços de
saúde, sempre apresentando problemas respiratórios, como irritação na garganta,
nos olhos e falta de ar", conta a especialista.
A gerente diz ainda que, por conta da grande
quantidade de fumaça que tomou conta da cidade aqueles que já possuíam
problemas respiratórios viram seus quadros se agravarem e que muitos outros
começaram a desenvolver uma dificuldade antes inexistente.
"A gente orientava sempre as pessoas a deixar
os ambientes o mais úmidos possível, quem tem umidificador deve usar ou se não
tem, colocar uma bacia com água, ou uma toalha com água no interior da casa.
Tudo isso porque quanto mais úmido estiver o ambiente, melhor fica para
respirar", explica.
Relatório técnico publicado em abril deste ano
pelos ministérios públicos estaduais de Mato Grosso do Sul e Mato Grosso (MPMS
e MPMT) classificou como
“impressionante” que boa parte dos incêndios tenha se originado em somente 286
locais, destes 152 em propriedades privadas (registradas no Cadastro
Ambiental Rural – CAR), 80 em áreas indígenas, 53 e áreas não identificadas e
apenas 1 em unidades de conservação.
Além dos dados iniciais, o estudo sugere:
·
4,5 milhões de hectares atingidos pelo fogo em
2020;
·
21 municípios afetados;
·
2.058 propriedades rurais, 16 unidades de
conservação e 6 terras indígenas atingidas;
·
57,7% dos focos de incêndio se originaram em
propriedades privadas;
·
333 propriedades apontadas como prioritárias para
conter o fogo.
Polícias
Segundo a Polícia Militar Ambiental de Mato Grosso
do Sul (PMA), em 2020 foram autuadas 56 pessoas físicas e jurídicas por
incêndios em áreas rurais do estado. Esse número representa um crescimento de
250% frente aos 16 de 2019. Veja mais dados:
·
12 autuações, o equivalente a 16,6% do total, foram
em municípios do Pantanal;
·
Aplicados R$ 65 mil em multas pela destruição de
64,51 hectares;
·
Valor representa 1,02% das penalidades aplicadas
pela PMA por incêndios ilegais em 2020;
·
O total chegou que a R$ 6,324 milhões e a 1,15%.
A Polícia Militar
Ambiental passou a fazer visitas periódicas para investigar as queimadas no
Pantanal. — Foto: Reprodução
O secretário estadual de Meio Ambiente de Mato
Grosso do Sul disse que somente em 30% dos locais que foram fiscalizados pela
PMA foi possível identificar e autuar o responsável pelos incêndios ilegais.
A Polícia Federal também investiga queimadas
florestais criminosas na região. Uma operação, inclusive, foi realizada em
setembro do ano passado, “Mataá”, para apurar um incêndio em uma das regiões
mais preservadas da região, perto do Parque Nacional do Pantanal, na divisa
entre Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, o fogo teria começado de forma
criminosa, dentro de uma fazenda, segundo a corporação.
De acordo com a PF, foram instaurados quatro
inquéritos policiais com o intuito de investigar as queimadas que aconteceram
no Pantanal no ano de 2020. A Polícia Federal aponta que os inquéritos estão
apurando crimes como:
·
Destruir ou danificar floresta considerada de
preservação permanente, mesmo que em formação, ou utilizá-la com infringência
das normas de proteção (1 a 3 anos de detenção);
·
Causar dano direto ou indireto às Unidades de
Conservação (1 a 5 anos de reclusão);
·
Provocar incêndio em mata ou floresta (2 a 5 anos
de reclusão);
·
Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais
que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a
mortandade de animais ou a destruição significativa da flora (1 a 4 anos de
reclusão).
A PF ressalta ainda que intensificou os esforços no
combate aos crimes ambientais nos últimos anos e destaca uma maior presença no
bioma com o apoio da PMA, além do desenvolvimento e capacitação de Policiais
Federais na utilização de ferramentas que utilizam imagens satélites como forma
acompanhar eventuais danos ambientais na região.
Segundo o Ministério Público Federal em Mato Grosso
do Sul (PRMS), “Não foram apresentadas denúncias até o momento, já que os
inquéritos instaurados em razão das queimadas do ano passado de competência
federal ainda não estão concluídos, com pendência de perícia. As investigações
ainda possuem sigilo decretado.
Por sua vez, a Federação de Agricultura e Pecuária
de Mato Grosso do Sul (Sistema Famasul), aponta que a instituição e o Senar/MS,
atuam de “forma conjunta orientando e capacitando produtores, trabalhadores
rurais e outros profissionais que desempenham funções no campo, com o intuito
de prevenir e combater incêndios em áreas rurais e minimizar impactos sociais e
econômicos, protegendo a fauna e flora, bem como a integridade de pessoas”.
A instituição ressalta também que, por meio dos 69
sindicatos rurais, faz constante alerta e promove atualização e treinamento de
técnicos de campo, prestadores de serviço e demais parceiros. A Famasul diz
ainda que se antecipa de forma enérgica, fazendo parte de grupos de trabalhos,
comissões e comitês de meio ambiente e realizando campanhas de conscientização
e prevenção, anualmente, além de outras parcerias que permitem o alcance de um
público ainda maior.
10/07/2021 G1