Economia
do país andino tem peculiaridades que desafiam dogmas econômicos — não se sabe
até quando
“O quê? A gasolina na Bolívia não
sobe de preço nem com a guerra entre a Ucrânia e a Rússia? Que loucura! Porque
no Equador ela disparou 30%; na Argentina, 18%; no Chile, 40%; no Brasil, 49%;
no Paraguai, 59%; no Peru, 64%. Isso sem falar do Uruguai: 84% de aumento!”
Era esse o conteúdo de um anúncio do Ministério da
Economia da Bolívia lançado em meados de julho. Sua publicação coincidiu com
uma série de notícias na imprensa internacional sobre a baixa inflação
registrada no país andino durante o primeiro semestre deste ano. A Bolívia ficou
famosa por anunciar uma inflação de 1,2% nos seis meses iniciais de 2022, a
menor da região. Em setembro, o mesmo índice acumulado chegou a 1,76%.
"Bolívia, o país com a menor
inflação do mundo", dizia outro anúncio lançado em meados do ano.
Como se sabe, a relação entre o
congelamento do preço dos combustíveis no país andino e a baixa inflação é
direta. O principal catalisador inflacionário do mundo é o incremento do preço
da energia, que aumentou fortemente após a eclosão da guerra na Ucrânia.
Na Bolívia, os preços dos combustíveis
não sobem desde o final do século passado, quando foram congelados durante o
governo de Hugo Banzer (1997-2000), uma das primeiras e mais importantes
incoerências no modelo neoliberal vigente na época. Banzer começou a subsidiar
a gasolina e o diesel, os combustíveis mais consumidos do país, porque estava
preocupado com o mal-estar social que já dava as caras durante seu governo e
explodiria em 2000 com a chamada “guerra da água”.
A mobilização, que parou a cidade de
Cochabamba por mais de uma semana, bloqueou uma medida neoliberal tão impopular
quanto a livre flutuação do preço dos combustíveis: a indexação das tarifas da
água potável. A “guerra da água” foi o antecedente direto das manifestações
contra o status quo e a queda em 2003 de Gonzalo Sánchez de Lozada, o
“patriarca” do neoliberalismo boliviano, que hoje tem 92 anos e vive exilado em
Washington.
Assim se criaram as condições para o
triunfo democrático de Evo Morales em 2006. Com ele, os camponeses e
trabalhadores chegaram ao poder organizados na frente única da esquerda
boliviana, o Movimento ao Socialismo (MAS).
Paradoxalmente, em 2010, Morales quis
suspender o subsídio à gasolina e ao diesel, alegando que a medida estava endividando
o Estado. Por mais que a Bolívia seja um país produtor de hidrocarbonetos, seu
ponto forte são os mais leves, principalmente o gás natural e o gás liquefeito
de petróleo. O país tem muito pouco petróleo leve e nada de petróleo pesado,
que é a matéria-prima do diesel. O abastecimento nacional, portanto, requer a
importação dessas substâncias a um preço que aumentou com o tempo.
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Ex-presidente
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pediu sua ajuda para libertar Jeanine Áñez
Morales estava no auge de seu poder e de
sua popularidade, mas não pôde impor o chamado “gasolinaço” devido à reação das
bases de seu próprio movimento. Precisou recuar e, para isso, usou a máxima que
só serviu naquele momento e nunca mais: de “governar obedecendo”. Quem ele
deveria obedecer era o povo. Povo que, no geral, dava ordens bem mais ambíguas
com interpretações diversas, mas não neste caso.
No que diz respeito ao preço da energia,
a voz do povo foi claríssima: zero aumento. Hoje mesmo, só os ultraliberais
bolivianos creem que podem acabar com o subsídio aos combustíveis — que neste
ano devem custar aos cofres públicos cerca de US$ 1,5 bilhão (R$ 7,8 bilhões) —
sem graves consequências sociais. Até a centro-direita respalda em público este
gasto, ainda que cultive em segredo a esperança de que sua magnitude termine
enterrando o modelo econômico que vem enfrentando sem êxito eleitoral nas duas
últimas décadas.
Controle de
preços
Um dos aspectos fundamentais deste
modelo é o controle ferrenho da inflação. A macroeconomia de Luis Arce,
primeiro como ministro da Economia de Morales e atualmente como presidente, tem
tal objetivo em seu cerne. Nisso, está plenamente de acordo com os economistas
ortodoxos. A obsessão anti-inflacionária vem da história da esquerda boliviana,
que precisou pagar com 20 anos de isolamento e marginalização sua participação
no governo hiperinflacionário dos anos 1980, encabeçado por Hernán Siles Zuazo.
Se o objetivo de uma baixa inflação é
compartilhado pelos dois tipos de pensamento econômico preponderantes no país —
o estatista e o neoliberal — as diferenças sobre como alcançá-la são enormes.
A “Arcenomics” conseguiu derrubar o mito
neoliberal de que os controles de preços nunca funcionam. Com cotas para
exportar alguns produtos e subsídios, o país conseguiu navegar pela inflação
mundial de 2007, assim como pela alta atual dos cereais e da carne. A seu favor
está a capacidade de produção alimentar da Bolívia, que é cerca de 70%
autossuficiente. E, claro, a pequena dimensão da economia, que pode se
estabilizar a um custo relativamente baixo: por exemplo, o gasto com o subsídio
aos combustíveis é imponente, mas não vai levar por si só o Tesouro à ruína.
Tipo de câmbio
fixo
Outro elemento-chave do modelo (e da
baixa inflação) é a eliminação da desvalorização do boliviano, a moeda local,
com a implementação de um tipo de câmbio fixo desde 2011. Sem desvalorização,
os comerciantes não precisam aumentar os preços para se protegerem do risco
cambiário. O boliviano se mantém forte, o que é bom para a pujança da demanda
interna e para as expectativas da população. Neste período, pela primeira vez
em muito tempo, talvez desde sempre, as famílias não temem fazer poupanças na
moeda nacional.
As expectativas são tão solidamente
otimistas que derrubaram outro baluarte neoclássico: déficits fiscais e
comerciais como os que o país vem tendo desde 2015 deveriam ter debilitado a
moeda nacional e empurrado o povo para o dólar. Em outras palavras, deveria ter
culminado em uma crise financeira, o que não ocorreu até agora. O país, na
realidade, foi ficando mais caro em dólares.
No que diz respeito a isso, o governo se
beneficia da alta neste ano dos preços das matérias-primas vendidas pela Bolívia,
fenômeno que até dezembro deve se traduzir em um superávit comercial de,
talvez, US$ 1,3 bilhão (R$ 6,8 bilhões).
O risco existe, no entanto. O câmbio
fixo exige que o governo tenha dólares suficientes para entregá-los a
importadores, viajantes e para pagar sua dívida. Caso contrário, o público
deixaria de considerar o boliviano como “forte” e, assim, uma crise financeira
seria produzida.
Foram as reservas cambiais que
precisaram suportar o peso do modelo anti-inflacionário de Arce. Na era do
superciclo das commodities (2004-2014), as reservas chegaram a representar 50%
do PIB, alimentadas por uma indústria de gás poderosa. De 2015 a este ano,
contudo, os lucros advindos do gás vinham caindo, e a produção também perdeu
força.
As reservas, em consequência, caíram de
US$ 15 bilhões (R$ 77,9 bilhões) para os atuais US$ 4,1 bilhões (R$ 21,3
bilhões) — US$ 1 bilhão (R$ 5,2 bilhões) líquido e o resto em ouro. A quantia
daria conta de cobrir seis meses de importações se o ouro for monetizado.
O superávit comercial e o superávit da
conta de capitais esperados para este ano deveriam se traduzir em um aumento
das reservas, mas isso não ocorre porque as fontes desses superávits são
principalmente privadas, e não estatais, como ocorria no período anterior. Os
donos das divisas não as depositam em bancos por motivos variados: algumas
figuras de setores agroindustriais as deixam no exterior, supostamente por
razões logísticas. Os mineradores de cooperativas que produzem e revendem ouro
(neste segundo caso, após comprá-lo do contrabando no Peru), preferem se manter
na informalidade. Quem recebe dólares de parentes no exterior não faz câmbio
nos bancos, onde pagaria um valor mais alto.
Simultaneamente, boa parte
dos dólares que entram no país sai rapidamente porque são usados por contrabandistas
que trazem produtos de países vizinhos, em particular da Argentina, cuja
elevada desvalorização incentiva o comércio informal na Bolívia.
A
chave: as reservas
Para
fortalecer as reservas, o governo lança mão de um plano de endividamento em
dólares que tira proveito do fato de a dívida externa boliviana ser de apenas
31% do Produto Interno Bruto (PIB), o que dá a La Paz uma margem importante para
buscar novos créditos no exterior. Também já está em curso outro plano de
“substituição de importações”, cujos resultados são discutíveis.
O que a oposição exige do governo é a redução do
déficit fiscal. Arce tem agido nesse sentido, o que leva quadros de seu próprio
partido a criticá-lo pela “falta de obras”. Em geral, no entanto, o modelo
segue baseando-se em um amplo gasto e investimentos públicos, o que torna
necessário aumentar a cada ano as arrecadações tributárias e o crédito que o
Banco Central concede ao Estado. Esse é um terceiro conceito neoclássico posto
em xeque: apesar do aumento do crédito interno e da oferta monetária, a
inflação não subiu.
Os economistas quebram a cabeça buscando um porquê. A
resposta mais verossímil está, mais uma vez, nas expectativas da população — o
povo crê que a estabilidade dos últimos 30 anos se manterá no futuro. Também
passa pela existência de poucos monopólios na Bolívia (os poucos que existem,
como o da cerveja, são desafiados pelo contrabando). Com poucas expectativa de
alta dos preços e uma competição estimulada pelo Estado ou pelo contrabando, o
resultado é que Milton Friedman fracassa na Bolívia: cresce a quantidade de
dinheiro, mas não os preços.
Como muitas vezes ocorre na América
Latina, o assunto se reduz às divisas. Tudo depende de o governo ter a
capacidade de acumular dólares suficientes para manter de pé a arquitetura que
descrevemos. Os economistas do governo e da oposição seguem o indicador de
reservas internacionais como se fosse seus próprios investimentos na bolsa.
Se o governo de Arce conseguir evitar,
de todas as formas, a desvalorização até o fim de sua gestão, em 2025, ninguém
poderá tirar sua medalha de ter conseguido fazer com que os bolivianos
atravessassem com maior comodidade que seus pares sul-americanos a dura etapa
econômica criada pela guerra.
Por Fernando
Molina— La Paz
16/10/2022